22.5.08

12 Junho 2003


Azimutes, de volta ao trabalho. Quinta, o dia mais cheio. Momento de pausa. 19:30. Aqui.

Biblioteca. Um dos melhores lugares do mundo.
Desde sempre, estar ali, tocar-lhes, aspirar-lhes o cheiro, ouvir-lhes o restolhar de folhas, ora lustrosas, couché, ora abrindo-se em poros largos, absorvendo humidades, amarelecendo, ganhando da oriental pele a cor. Isso, só pode ser sabedoria. Olhos percorrendo-lhes o corpo,
escolhendo pelas letras, por nomes, às vezes, de obras, de estórias. Outras vezes ainda, segundo guinadas, intuições, feelings, coisa tão usual em mim. Uma capa: neve (a mais bela manifestação da natureza, meu Deus, como a amo, que saudades!), árvore em súplica, despida, de ramos estendidos, larga como a fertilidade. Título: "O bater solitário do coração", do autor Henry Troyat, pseudónimo de refugiado - Revolução de 1917, fim de czares - que viria a ser membro da Académie Française. Todos os seres humanos deveriam ler essa fina bíblia, que de pouco espessa, logo implica sabedoria.

Com a idade, tudo se resume a pouco. Outra grande ironia da humana espécie: envelhecer é, só pode ser belo. Nunca querer ter 18 anos, ser bela e correr o mundo. Ter a ambição de ter mais de 26, curso pronto, decisões-mor tomadas, contas a sós, carro perseguidor de estradas. Silêncio. Ausência. Preparar a emergente morte. Chamá-la. Querê-la até ao âmago...

Desiludam-se os sonhadores de romances gastos entre lugares-comuns onde o sexo engana a alma já vazia de si: "O bater solitário do coração" descreve de forma sublime a visão de um velho aristocrata que, da Sampetersburgo czarista é acolhido num país tão belo como o seu e igual em genialidade: França. Este homem educará dois filhos e assistirá, aterrorizado, a uma nova "revolução", ao movimento estudantil de Maio de 68 e à crise que se lhe segue. Apesar da épica descrição desses homens novos, vale a pena saber da velha empregada (Antonovna???) que lhe cuida dos últimos tempos. Alimentos, banho, despir e vestir, entretenimento (xadrez) são com ela. Ele, assiste, analisa, assusta-se, apaixonar-se-ia, até, pela noiva de um dos filhos, se não tivesse cerca de 80 anos...

Quando alguém me vir a sério, quero ser aquela mulher descrita por aquele velho... Que os meus olhares, suaves ou não movimentos e tom de voz sejam vistos por essa espécie de eterno masculino com perfeito conhecimento da humana condição. Só isso. Ele sabia, como eu sei, que a beleza se resume a movimentos, ao seu reatar e à paragem deles. Imagens paradas ou em evolução. Está tudo no andar, nos gestos dos braços. A palavra é: harmonia. Paz, é o que se deve ver num andar, por mais rápido que seja. E depois, voltar do pescoço, toque das mãos, mesmo sem serem bonitas. E, mais que tudo, os olhos. Tudo está no olhar. Absolutamente tudo. Com ele, tudo se consegue: domar a maior fera humana, acusar a mais corrupta mente, dar amor em sereno estado de alma, transmitir energia. Saber que não há um olhar de bebé que resista ao nosso, rir com os olhos, e, mesmo depois da rispidez às vezes necessária, usar com sabedoria a terapia do toque. Nos braços, nos ombros, sobre os cabelos. Aprender a abençoar aquilo que se toca. Aspirar no próprio oxigénio a humana condição, perceber tudo dos outros pelo simples pestanejar. E depois, IRRADIAR. Irradiar luz, às vezes... Tanta, que os pés deixam o chão, a ascenção é certa. Ser feliz assim é fácil Muito fácil. Basta abrir os olhos pela manhã. O céu está bem perto. É só esticar um braço, abrir os olhos.
E ler, por favor, ler aquele livro.

Assistir à mais sublime descrição da morte que se aproxima, o velho em lanche de família. As conversas na sala, o deixá-lo sob o sol, aconchegando-lhe o corpo de espantalho ao qual nem colarinhos nem mangas de camisa caem bem, já. Deixá-lo naquela cadeira. O sol pôr-se, ele recordar, dormitar. Temer o esquecimento, pedindo mais cobertor nas pernas ossudas. Procurar o afago dos outros: "esqueceram-se de mim...". E ter saudades, nostalgia de ter sido poderoso, um dia, de ter amado, ter recebido em troca, ter acreditado na própria imortalidade.

É isso. Deveria ser obrigatório ler livros assim. E perceber, como se até aí, a vida fosse o comatoso estado. Perceber que o tempo, como aquela aranha que observo a urdir a teia não se compadece dos nosso espasmos. Quanto maiores os movimentos, maior o enredamento, mais atávico e contraproducente é o desespero. Melhor que nós, essa aranha sabe bem o caminho que lhe destinou a natureza. Segue os seus padrões. Tece, urde, entrelaça as tramas.

Bem-hajas, Henry Troyat! Quando fechar os olhos, quero ver-te do outro lado. Espera por mim, querido irmão!...


inês / 21:58

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