10 Junho 2003
Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades de Língua Portuguesa (morte oficial de Camões), o feriado mais nacional, 10 de Junho, 21:42, uma Terça.
Observava o mundo de dentro dos meus estores. Posição do sol: boa. Está tímido, como eu gosto, vítima de foto-sensibilidade. Dias cinzentos são bem vindos. Nesses, o franzir da testa deve-se apenas e só ao que observam os meus olhos e aos pensamentos daí resultantes. O sol apenas interfere, sobrecarregando-me o semblante já pensativo desde cedo.
Jovens que conheço (alguns, só de vista) reunem-se nas traseiras do prédio. Arrastam as pernas, nas suas calças de dread, o seu ar de cansaço de tudo e por não haver batuques da ridícula capoeira ou afins danças nativas - danças nativas são lindas pelos seus originais, que as sentem e têm lugar próprio, que não as imediações de casas onde por vezes já dorme gente -, um deles bamboleia-se pela música ouvida nos headphones. Pára, partilha com outros. Todos dançam à vez. Sentam-se, um casalinho afasta-se e volta com cigarros para todos. Todos fumam. Não falam alto como de costume. Há algo a esconder. Chega o dealer. Limpinho, camisolinha em bandas pretibrancas, lembrando zebra. Também ele é um animal selvagem, ocultando pouco os olhos iridiscentes que, aposto, tem, por detrás daqueles óculos-máscara que não sei para que servem, tão transparentes são... Penso logo que se vai autopsiar alguém, pois só me lembro da Dana Scully nos "Ficheiros Secretos" devidamente "oculada" e "batada" para abrir um qualquer alien. O tipo vai, obviamente, aproximar os miúdos do dia da autópsia: seja qual for a droga, a queda é certa, demore mais ou menos. Trafica, distribui, convence. Um dos miúdos parece desafiá-lo e o dealer tem necessidade de gesticular... O miúdo mostra-lhe o interior da sua mochila, o tipo pasma e cala-se. O diálogo deve ter sido do tipo: «Deixa os meus "amigos" que quando eles quiserem produto, é a mim que procuram!»... Chamar a polícia voltará a ser inútil, alguns vivem do mesmo...
Dois dos miúdos são meus alunos, estão comigo quatro horas por semana: uma das raparigas e um dos rapazes. Gosto deles. São cultos, têm garra, personalidade. O que eu queria era chegar ali e dizer-lhes que tal como eu, há muita gente que os ama. E que ninguém lhes quer como os pais. Que eles são o maior tesouro que alguém pode ter...
Amanhã, fazem o teste sobre o homem que hoje se celebra. Se ao menos eu conseguisse chegar até eles... Pergunto-me se um dia me assaltarão, se verei a miúda por aí. Então, será tarde para lamentar... Vou encher-me de coragem: amanhã digo-lhes que são dois seres humanos fantásticos e que eu e muitos mais queremos o melhor para eles.
Meu Deus, dá-me tempo e sobretudo coragem para, finalmente, escrever uma pequena nota a todos, aos cerca de 130, dizendo-lhes o que cada um deles me ensinou a mim, mostrando que estive atenta, que cada um é importante, mesmo aquele que me fez chorar em privado, quando todos dormiam, por me ter ofendido e magoado como nunca ninguém fizera! E eu sou terrivelmente forte e disciplinadora e de uma lucidez atroz, mas nunca, nunca fui mal educada com um professor... Alguns, ainda são os meus heróis.
Amanhã, sei que vou ter coragem! Com o olhar, tenho-lhes dito tanto... Será que têm sabido ler o meu olhar? Que orgulho sinto nessa geração, nas suas (às vezes poucas) ideias, nas suas crenças, nas suas dúvidas. Não suporto é a boçalidade, a violência, a irresponsabilidade dos alunos dos outros. Com as minhas turmas, sempre tive sorte.
E sei, sei que escolhi a melhor profissão do mundo, venham os cínicos sorrisos que vierem. Contento-me com pouco. Por isso sou feliz.
ines / 23:24
Etiquetas: Adolescências
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