20.3.06

26 Maio 2003



Azimutes, sob o sol, 13:35, 26/5/2003.


Desde o meu posto na terra, observo os peixes abissais que, nas profundezas imundas de um artificial lago, afloram à tona, entre nenúfares espantosamente brancos. Sobressaindo da beleza, entre farrapos de comida, despojos de muitos dias coroados de adolescência à qual tudo é desculpado: latas, embalagens plásticas, tampas de refrigerantes, um preservativo... Os peixes, de olhar baço, sentem-me a sombra e deixam de fingir imobilidade. Percebe-se que estão vivos, faiscando em vermelho-fogo e negro-pó. A caminho da saída parei para observar o pão que os pardais disputam, as novas folhas de Maio, o lago que já foi meu. Também eu me reflecti nessas águas, um dia, há quase vinte anos, quando a frase " - Vou para a escola!" sabia bem, mas menos do que hoje. Dizer isso aos trinta e três, saborear-lhe o gosto, é melhor do que nunca, apesar de tudo...

Não durará muito esta paz... Nova adolescente vestindo-se com as marcas da moda, perfeita de alto a baixo, diz alto a palavra do F. ... uma, duas, três vezes... Sou impelida, forçada, torturada até dizer-lhe que estava tudo bem, tudo era perfeito nela, até ter aberto a boca, ter estalado o verniz, ter mostrado como é: "tem", mas não "é", existe, gasta, impõe-se, agasta, satura, guincha, cansa, enoja... Tudo isto é pensado, calma! - não podemos traumatizar as crianças do futuro, que aos quarenta terão treze!- , excepto a parte do elogio que termina com verniz estalado, lascado, reles, a princesa em abóbora podre, a borboleta em rato de esgoto que vomita putrefacção...
Palavroar é empestar, maldizer, amaldiçoar, oposto a estar feliz, a proporcionar paz, contemplação do mundo, pose de humildade, abençoar com os olhos, espiritualizar a lava informe a que se deu o nome de corpo, mera embalagem, mero suporte, coisa tão bela como descartável que, dois dias depois da hora, tem aos outros cheiro igual, é pasto de vermes, coisa apoucada, vazia de si... Exagero? Nããããaaa, pura verdade! Dói? Paciência! Dói muito mais ver a humana criatura em perfumes tais envolta, tão em desdém envolvida, lançar teatralmente a lata, o papel, o plástico, todo o lixo que é e produz num único sentido: de si para o chão, mesmo que o caixote esteja a meros dois passos. Dois: um, dois. Devo habituar-me à selvajaria: " - Os empregados estão cá para limpar! Que limpem! Para isso lhes pagam os meus pais!..." Habitu... quê? Habituar-me??? NUNCA!!! Quando não souber quem sou, quando a tal virar o rosto, reformem-me, internem-me, afastem-me compulsivamente: estarei morta!


21:41



Azimutes, interior, 0:53, 26/5/2003.

A tentativa de esquecer Azimutes afigura-se-me impossível. Está em todo o lado: o ar é desse lugar, os olhares igualmente, o chão, esse mesmo, o que piso e as atitudes são-no também.
Recordo um outro episódio.
Dentro do portão da instituição - que cada vez o é menos -, um grupo de adolescentes. Um deles, berra um insulto dez vezes a um outro. Dez vezes. Dez vezes, sempre sonoramente, sempre com a mesma fúria. Trabalhando serenamente numa das salas da casa, canso-me. Saio. Olho pela janela que me é lateral. Vejo quem insulta, quem é insultado, quem é conivente. O guarda, a seis metros, ignora, faz-se distraído. O que insulta, precisa urgentemente de consulta psiquiátrica, penso. De cada vez que lança novo insulto, olha à volta, neuroticamente, humedece os lábios - vejo-lhe nitidamente a língua, o ferroto, pergunto-me se é bifurcada... - estou a escassos 10 metros. Um deles vê-me nesse primeiro andar, de rosto carregado, a observá-los e a sentir pelo meu olhar que odeio a boçalidade. Duas vezes me vê, duas vezes finge não ter visto. Estou cega de fúria. Penso em interferir nessa conversa de "homens", peso prós e contras, riscos possíveis no carro... Novo insulto: "És mesmo um p...., pá! Aquela gáija passou e nem ólhastes! Que bergonha! Sou teu amigo, pá! Num quero que seijas assinhe, percebes?..." O "percebes" final, poluição linguística que grassa no país, foi a gota de água! Mas, eles saíam já do espaço. Desisto. Penso resolver aquilo "a frio, talvez amanhã"...

Azar deles: quando jantava no bar da instituição, o insultador e acólitos entram. O mais alto, que me vira na janela, reconhece-me e, mais uma vez, mostra que tipo de homem é, voltando a cara. Pergunto-lhes a turma, trato-os por senhores. Dirijo-me ao culpado, cerco-o com os olhos, esmago-o com os meus argumentos: que adianta ou atrasa à sua vidinha as tendências sexuais dos outros? Que quem assim insulta ali, fá-lo-á mais vezes, na rua, no emprego, nos desafios desportivos, no trânsito, em casa. Como fazer se o seu próprio filho for um dia um "p........", e como saber, sim, como sabermos nós próprios, que decerto ainda não tivémos a nossa primeira experienciazinha sexual, se não somos iguais? A tolerância aprende-se aqui, nestas mesas, nestes bancos, tal como o a capacidade para a paz. Por outro lado, a menina que passara quando o "p....." nem olhara, fora insultada... Percebera o idiota do insultador que ela nunca o olharia duas vezes? Uma mulher tem a sua dignidade, não aplaude bestas, grosseirões, lançadores de insultos, mesmo que o seu físico excite esses animais ditos "de cobrição" ou por isso mesmo... O rapaz tenta recuar, outro interfere, porque lhes chamei cobardes. Num golpe rápido de olhos cortantes, digo-lhe que a conversa "não é com o senhor". Cala-se, encolhe-se. Desta massa se fará o meu país. Que indignidade! Termino com remate dolorosamente - para mim - bíblico - mas quem se atreveria a negar essa verdade de aço? - : "não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti".
Ninguém no bar interfere. Falo baixo e incisivamente. Todos percebem que há ali muita tensão. Acabo. Digo-lhes que tenham melhor porte, mais dignidade. Acabo.
No início, cantavam canções bíblicas para me provocar, ou sorriam entre eles, inseguros e procurando apoio no olhar do idiota mais próximo. "Homens em grupo", penso "São tãããaao fortes!". Riam, ensaiavam insultos mais leves uns aos outros.
Agora, que lhes falei, explicando que não temos de ser inimigos para todo o sempre e que passarei a cumprimentá-los, sorriem, tímidos como se fossem do primeiro ciclo, simpáticos até e admitem:
" - É simples, nunca ninguém nos disse absolutamente nada, aqui. Nunca nos foi chamada a atenção por absolutamente nada... Por isso é que estranhámos tanto. Desculpe...".
Sorrio. Digo que sou dali, de Azimutes. Reconheço que sou diferente, que tenho espírito de "cota" e que a minha verdade é que a educação, a sabedoria e a dignidade nunca estiveram a mais na vida de ninguém... Nunca pedirei desculpa pelas minhas palavras, nunca, mas peço pela agressividade de que as imprimo. Sempre mais força do que aquela que queria. Tant pis!...
Vamos cruzar-nos muitas vezes, na nossa cidade. Partilharemos muitas coisas, provavelmente, serei eu a ensinar os seus filhos, naquele mesmo lugar. Será como quiserem na lei da reciprocidade. Só receberão o respeito que derem aos outros. Ponto final.
Aceitam, ainda tristes mas já de alívio colado ao rosto. Afasto-me. Tenho consciência dos riscos que corro. Estou viva. Penso. Arrisco. Deus nunca me abandonou até hoje. Ensinar é desgastante e absolutamente entristecedor as mais das vezes: implica envolvimento e eu, eu nunca virarei confortavelmente a cara sempre que outros façam ou digam o que a mim me faria sofrer. Reciprocidade: "Ser-te-á devolvido na medida em que deres".


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