22.5.08

12 Junho 2003


Azimutes, de volta ao trabalho. Quinta, o dia mais cheio. Momento de pausa. 19:30. Aqui.

Biblioteca. Um dos melhores lugares do mundo.
Desde sempre, estar ali, tocar-lhes, aspirar-lhes o cheiro, ouvir-lhes o restolhar de folhas, ora lustrosas, couché, ora abrindo-se em poros largos, absorvendo humidades, amarelecendo, ganhando da oriental pele a cor. Isso, só pode ser sabedoria. Olhos percorrendo-lhes o corpo,
escolhendo pelas letras, por nomes, às vezes, de obras, de estórias. Outras vezes ainda, segundo guinadas, intuições, feelings, coisa tão usual em mim. Uma capa: neve (a mais bela manifestação da natureza, meu Deus, como a amo, que saudades!), árvore em súplica, despida, de ramos estendidos, larga como a fertilidade. Título: "O bater solitário do coração", do autor Henry Troyat, pseudónimo de refugiado - Revolução de 1917, fim de czares - que viria a ser membro da Académie Française. Todos os seres humanos deveriam ler essa fina bíblia, que de pouco espessa, logo implica sabedoria.

Com a idade, tudo se resume a pouco. Outra grande ironia da humana espécie: envelhecer é, só pode ser belo. Nunca querer ter 18 anos, ser bela e correr o mundo. Ter a ambição de ter mais de 26, curso pronto, decisões-mor tomadas, contas a sós, carro perseguidor de estradas. Silêncio. Ausência. Preparar a emergente morte. Chamá-la. Querê-la até ao âmago...

Desiludam-se os sonhadores de romances gastos entre lugares-comuns onde o sexo engana a alma já vazia de si: "O bater solitário do coração" descreve de forma sublime a visão de um velho aristocrata que, da Sampetersburgo czarista é acolhido num país tão belo como o seu e igual em genialidade: França. Este homem educará dois filhos e assistirá, aterrorizado, a uma nova "revolução", ao movimento estudantil de Maio de 68 e à crise que se lhe segue. Apesar da épica descrição desses homens novos, vale a pena saber da velha empregada (Antonovna???) que lhe cuida dos últimos tempos. Alimentos, banho, despir e vestir, entretenimento (xadrez) são com ela. Ele, assiste, analisa, assusta-se, apaixonar-se-ia, até, pela noiva de um dos filhos, se não tivesse cerca de 80 anos...

Quando alguém me vir a sério, quero ser aquela mulher descrita por aquele velho... Que os meus olhares, suaves ou não movimentos e tom de voz sejam vistos por essa espécie de eterno masculino com perfeito conhecimento da humana condição. Só isso. Ele sabia, como eu sei, que a beleza se resume a movimentos, ao seu reatar e à paragem deles. Imagens paradas ou em evolução. Está tudo no andar, nos gestos dos braços. A palavra é: harmonia. Paz, é o que se deve ver num andar, por mais rápido que seja. E depois, voltar do pescoço, toque das mãos, mesmo sem serem bonitas. E, mais que tudo, os olhos. Tudo está no olhar. Absolutamente tudo. Com ele, tudo se consegue: domar a maior fera humana, acusar a mais corrupta mente, dar amor em sereno estado de alma, transmitir energia. Saber que não há um olhar de bebé que resista ao nosso, rir com os olhos, e, mesmo depois da rispidez às vezes necessária, usar com sabedoria a terapia do toque. Nos braços, nos ombros, sobre os cabelos. Aprender a abençoar aquilo que se toca. Aspirar no próprio oxigénio a humana condição, perceber tudo dos outros pelo simples pestanejar. E depois, IRRADIAR. Irradiar luz, às vezes... Tanta, que os pés deixam o chão, a ascenção é certa. Ser feliz assim é fácil Muito fácil. Basta abrir os olhos pela manhã. O céu está bem perto. É só esticar um braço, abrir os olhos.
E ler, por favor, ler aquele livro.

Assistir à mais sublime descrição da morte que se aproxima, o velho em lanche de família. As conversas na sala, o deixá-lo sob o sol, aconchegando-lhe o corpo de espantalho ao qual nem colarinhos nem mangas de camisa caem bem, já. Deixá-lo naquela cadeira. O sol pôr-se, ele recordar, dormitar. Temer o esquecimento, pedindo mais cobertor nas pernas ossudas. Procurar o afago dos outros: "esqueceram-se de mim...". E ter saudades, nostalgia de ter sido poderoso, um dia, de ter amado, ter recebido em troca, ter acreditado na própria imortalidade.

É isso. Deveria ser obrigatório ler livros assim. E perceber, como se até aí, a vida fosse o comatoso estado. Perceber que o tempo, como aquela aranha que observo a urdir a teia não se compadece dos nosso espasmos. Quanto maiores os movimentos, maior o enredamento, mais atávico e contraproducente é o desespero. Melhor que nós, essa aranha sabe bem o caminho que lhe destinou a natureza. Segue os seus padrões. Tece, urde, entrelaça as tramas.

Bem-hajas, Henry Troyat! Quando fechar os olhos, quero ver-te do outro lado. Espera por mim, querido irmão!...


inês / 21:58

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10 Junho 2003


Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades de Língua Portuguesa (morte oficial de Camões), o feriado mais nacional, 10 de Junho, 21:42, uma Terça.


Observava o mundo de dentro dos meus estores. Posição do sol: boa. Está tímido, como eu gosto, vítima de foto-sensibilidade. Dias cinzentos são bem vindos. Nesses, o franzir da testa deve-se apenas e só ao que observam os meus olhos e aos pensamentos daí resultantes. O sol apenas interfere, sobrecarregando-me o semblante já pensativo desde cedo.


Jovens que conheço (alguns, só de vista) reunem-se nas traseiras do prédio. Arrastam as pernas, nas suas calças de dread, o seu ar de cansaço de tudo e por não haver batuques da ridícula capoeira ou afins danças nativas - danças nativas são lindas pelos seus originais, que as sentem e têm lugar próprio, que não as imediações de casas onde por vezes já dorme gente -, um deles bamboleia-se pela música ouvida nos headphones. Pára, partilha com outros. Todos dançam à vez. Sentam-se, um casalinho afasta-se e volta com cigarros para todos. Todos fumam. Não falam alto como de costume. Há algo a esconder. Chega o dealer. Limpinho, camisolinha em bandas pretibrancas, lembrando zebra. Também ele é um animal selvagem, ocultando pouco os olhos iridiscentes que, aposto, tem, por detrás daqueles óculos-máscara que não sei para que servem, tão transparentes são... Penso logo que se vai autopsiar alguém, pois só me lembro da Dana Scully nos "Ficheiros Secretos" devidamente "oculada" e "batada" para abrir um qualquer alien. O tipo vai, obviamente, aproximar os miúdos do dia da autópsia: seja qual for a droga, a queda é certa, demore mais ou menos. Trafica, distribui, convence. Um dos miúdos parece desafiá-lo e o dealer tem necessidade de gesticular... O miúdo mostra-lhe o interior da sua mochila, o tipo pasma e cala-se. O diálogo deve ter sido do tipo: «Deixa os meus "amigos" que quando eles quiserem produto, é a mim que procuram!»... Chamar a polícia voltará a ser inútil, alguns vivem do mesmo...

Dois dos miúdos são meus alunos, estão comigo quatro horas por semana: uma das raparigas e um dos rapazes. Gosto deles. São cultos, têm garra, personalidade. O que eu queria era chegar ali e dizer-lhes que tal como eu, há muita gente que os ama. E que ninguém lhes quer como os pais. Que eles são o maior tesouro que alguém pode ter...

Amanhã, fazem o teste sobre o homem que hoje se celebra. Se ao menos eu conseguisse chegar até eles... Pergunto-me se um dia me assaltarão, se verei a miúda por aí. Então, será tarde para lamentar... Vou encher-me de coragem: amanhã digo-lhes que são dois seres humanos fantásticos e que eu e muitos mais queremos o melhor para eles.
Meu Deus, dá-me tempo e sobretudo coragem para, finalmente, escrever uma pequena nota a todos, aos cerca de 130, dizendo-lhes o que cada um deles me ensinou a mim, mostrando que estive atenta, que cada um é importante, mesmo aquele que me fez chorar em privado, quando todos dormiam, por me ter ofendido e magoado como nunca ninguém fizera! E eu sou terrivelmente forte e disciplinadora e de uma lucidez atroz, mas nunca, nunca fui mal educada com um professor... Alguns, ainda são os meus heróis.


Amanhã, sei que vou ter coragem! Com o olhar, tenho-lhes dito tanto... Será que têm sabido ler o meu olhar? Que orgulho sinto nessa geração, nas suas (às vezes poucas) ideias, nas suas crenças, nas suas dúvidas. Não suporto é a boçalidade, a violência, a irresponsabilidade dos alunos dos outros. Com as minhas turmas, sempre tive sorte.
E sei, sei que escolhi a melhor profissão do mundo, venham os cínicos sorrisos que vierem. Contento-me com pouco. Por isso sou feliz.


inês / 23:24

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10 Junho 2003


Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades de Língua Portuguesa (morte oficial de Camões), o feriado mais nacional, 10 de Junho, 21:42, uma Terça.

Observava o mundo de dentro dos meus estores. Posição do sol: boa. Está tímido, como eu gosto, vítima de foto-sensibilidade. Dias cinzentos são bem vindos. Nesses, o franzir da testa deve-se apenas e só ao que observam os meus olhos e aos pensamentos daí resultantes. O sol apenas interfere, sobrecarregando-me o semblante já pensativo desde cedo.

Jovens que conheço (alguns, só de vista) reunem-se nas traseiras do prédio. Arrastam as pernas, nas suas calças de dread, o seu ar de cansaço de tudo e por não haver batuques da ridícula capoeira ou afins danças nativas - danças nativas são lindas pelos seus originais, que as sentem e têm lugar próprio, que não as imediações de casas onde por vezes já dorme gente -, um deles bamboleia-se pela música ouvida nos headphones. Pára, partilha com outros. Todos dançam à vez. Sentam-se, um casalinho afasta-se e volta com cigarros para todos. Todos fumam. Não falam alto como de costume. Há algo a esconder. Chega o dealer. Limpinho, camisolinha em bandas pretibrancas, lembrando zebra. Também ele é um animal selvagem, ocultando pouco os olhos iridiscentes que, aposto, tem, por detrás daqueles óculos-máscara que não sei para que servem, tão transparentes são... Penso logo que se vai autopsiar alguém, pois só me lembro da Dana Scully nos "Ficheiros Secretos" devidamente "oculada" e "batada" para abrir um qualquer alien. O tipo vai, obviamente, aproximar os miúdos do dia da autópsia: seja qual for a droga, a queda é certa, demore mais ou menos. Trafica, distribui, convence. Um dos miúdos parece desafiá-lo e o dealer tem necessidade de gesticular... O miúdo mostra-lhe o interior da sua mochila, o tipo pasma e cala-se. O diálogo deve ter sido do tipo: «Deixa os meus "amigos" que quando eles quiserem produto, é a mim que procuram!»... Chamar a polícia voltará a ser inútil, alguns vivem do mesmo...
Dois dos miúdos são meus alunos, estão comigo quatro horas por semana: uma das raparigas e um dos rapazes. Gosto deles. São cultos, têm garra, personalidade. O que eu queria era chegar ali e dizer-lhes que tal como eu, há muita gente que os ama. E que ninguém lhes quer como os pais. Que eles são o maior tesouro que alguém pode ter...
Amanhã, fazem o teste sobre o homem que hoje se celebra. Se ao menos eu conseguisse chegar até eles... Pergunto-me se um dia me assaltarão, se verei a miúda por aí. Então, será tarde para lamentar... Vou encher-me de coragem: amanhã digo-lhes que são dois seres humanos fantásticos e que eu e muitos mais queremos o melhor para eles.
Meu Deus, dá-me tempo e sobretudo coragem para, finalmente, escrever uma pequena nota a todos, aos cerca de 130, dizendo-lhes o que cada um deles me ensinou a mim, mostrando que estive atenta, que cada um é importante, mesmo aquele que me fez chorar em privado, quando todos dormiam, por me ter ofendido e magoado como nunca ninguém fizera! E eu sou terrivelmente forte e disciplinadora e de uma lucidez atroz, mas nunca, nunca fui mal educada com um professor... Alguns, ainda são os meus heróis.

Amanhã, sei que vou ter coragem! Com o olhar, tenho-lhes dito tanto... Será que têm sabido ler o meu olhar? Que orgulho sinto nessa geração, nas suas (às vezes poucas) ideias, nas suas crenças, nas suas dúvidas. Não suporto é a boçalidade, a violência, a irresponsabilidade dos alunos dos outros. Com as minhas turmas, sempre tive sorte.
E sei, sei que escolhi a melhor profissão do mundo, venham os cínicos sorrisos que vierem. Contento-me com pouco. Por isso sou feliz.


ines / 23:24

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16.4.07

6 Junho 2003



Azimutes, seis do seis, 5 horas matinais. Descompressão...

Desculpa. Desculpa. Desculpa. Desculpa. Desculpa. Desculpa. Descul... Desc... Dsc... D...
Não desculpou. Não disse que sim nem que não. Só devolveu um silêncio insuportável.
Virou costas, amuou, ira nos olhos, mãos crispadas.
Ela ficou ali, trabalhando em Azimutes.
Já lhe tinham perguntado: para que pedes perdão se o erro é recorrente e sabes que incorrerás nele?...
Não sabe. Não quer saber.
Apesar das boas intenções a encherem o Inferno desde sempre, sabe que só faz o que pode.
Desiste de tentar acorrer a todos, esquecendo-se de si, da sua vida ainda pequena, do seu estudo, do trabalho.
Sublima. Sublima. Sublima. Sublime e subliminarmente, sabe que só acontece o que tiver de acontecer. Espera.
Esperar é a mais perfeita arte. Para ver. Para avançar como laborioso bicho-da-seda, comendo a amorosa folha de amoreiras maduras.
Almada Negreiros disse-lhe a um ouvido: "(...) não tenho mal entendidos com a vida".

Por hoje chega. Agita os ombros num suspiro operático e discreto. Fecha a mochila, dez quilos de pesada sabedoria:
" - A viver com isto é que deviam ensinar-nos, a gerir isto... Ainda dizem que o Amor une... Não entendo, professora..."
" - Eu também não... Talvez um dia consigamos, eu, tu... e a Humanidade inteira! Entretanto, não sofras por antecipação: ama o estar só. Observa..."


04:59




Azimutes, já seis de Junho, 2003, 4 horas.
O país tenta manter a cabeça fora de água, tal como a límpida adolescência que lhe construirá o futuro. Leia-se! Analise-se! O país precisa é de mais "artistas", força motriz que, como sabemos, cumprirá Portugal, abrindo-se, literalmente em posts pós-modernos, pós-esgoto, ensaios de futuras depressões "pós-pasto", de tanto "criar", de tanto "dar o corpo ao manifesto"!!! Que viva a genesíaca cultura nacional! Nós não lhes damos o devido valor!... Quando estiverem mortos estes "artistas", proponho desde já uma singela homenagem, que não um epitáfio, título de obra do Imortal (este sim!)Boris Vian: "J' irai cracher sur vos tombes"!!!
(...)
04:07

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20.3.06

26 Maio 2003



Azimutes, sob o sol, 13:35, 26/5/2003.


Desde o meu posto na terra, observo os peixes abissais que, nas profundezas imundas de um artificial lago, afloram à tona, entre nenúfares espantosamente brancos. Sobressaindo da beleza, entre farrapos de comida, despojos de muitos dias coroados de adolescência à qual tudo é desculpado: latas, embalagens plásticas, tampas de refrigerantes, um preservativo... Os peixes, de olhar baço, sentem-me a sombra e deixam de fingir imobilidade. Percebe-se que estão vivos, faiscando em vermelho-fogo e negro-pó. A caminho da saída parei para observar o pão que os pardais disputam, as novas folhas de Maio, o lago que já foi meu. Também eu me reflecti nessas águas, um dia, há quase vinte anos, quando a frase " - Vou para a escola!" sabia bem, mas menos do que hoje. Dizer isso aos trinta e três, saborear-lhe o gosto, é melhor do que nunca, apesar de tudo...

Não durará muito esta paz... Nova adolescente vestindo-se com as marcas da moda, perfeita de alto a baixo, diz alto a palavra do F. ... uma, duas, três vezes... Sou impelida, forçada, torturada até dizer-lhe que estava tudo bem, tudo era perfeito nela, até ter aberto a boca, ter estalado o verniz, ter mostrado como é: "tem", mas não "é", existe, gasta, impõe-se, agasta, satura, guincha, cansa, enoja... Tudo isto é pensado, calma! - não podemos traumatizar as crianças do futuro, que aos quarenta terão treze!- , excepto a parte do elogio que termina com verniz estalado, lascado, reles, a princesa em abóbora podre, a borboleta em rato de esgoto que vomita putrefacção...
Palavroar é empestar, maldizer, amaldiçoar, oposto a estar feliz, a proporcionar paz, contemplação do mundo, pose de humildade, abençoar com os olhos, espiritualizar a lava informe a que se deu o nome de corpo, mera embalagem, mero suporte, coisa tão bela como descartável que, dois dias depois da hora, tem aos outros cheiro igual, é pasto de vermes, coisa apoucada, vazia de si... Exagero? Nããããaaa, pura verdade! Dói? Paciência! Dói muito mais ver a humana criatura em perfumes tais envolta, tão em desdém envolvida, lançar teatralmente a lata, o papel, o plástico, todo o lixo que é e produz num único sentido: de si para o chão, mesmo que o caixote esteja a meros dois passos. Dois: um, dois. Devo habituar-me à selvajaria: " - Os empregados estão cá para limpar! Que limpem! Para isso lhes pagam os meus pais!..." Habitu... quê? Habituar-me??? NUNCA!!! Quando não souber quem sou, quando a tal virar o rosto, reformem-me, internem-me, afastem-me compulsivamente: estarei morta!


21:41



Azimutes, interior, 0:53, 26/5/2003.

A tentativa de esquecer Azimutes afigura-se-me impossível. Está em todo o lado: o ar é desse lugar, os olhares igualmente, o chão, esse mesmo, o que piso e as atitudes são-no também.
Recordo um outro episódio.
Dentro do portão da instituição - que cada vez o é menos -, um grupo de adolescentes. Um deles, berra um insulto dez vezes a um outro. Dez vezes. Dez vezes, sempre sonoramente, sempre com a mesma fúria. Trabalhando serenamente numa das salas da casa, canso-me. Saio. Olho pela janela que me é lateral. Vejo quem insulta, quem é insultado, quem é conivente. O guarda, a seis metros, ignora, faz-se distraído. O que insulta, precisa urgentemente de consulta psiquiátrica, penso. De cada vez que lança novo insulto, olha à volta, neuroticamente, humedece os lábios - vejo-lhe nitidamente a língua, o ferroto, pergunto-me se é bifurcada... - estou a escassos 10 metros. Um deles vê-me nesse primeiro andar, de rosto carregado, a observá-los e a sentir pelo meu olhar que odeio a boçalidade. Duas vezes me vê, duas vezes finge não ter visto. Estou cega de fúria. Penso em interferir nessa conversa de "homens", peso prós e contras, riscos possíveis no carro... Novo insulto: "És mesmo um p...., pá! Aquela gáija passou e nem ólhastes! Que bergonha! Sou teu amigo, pá! Num quero que seijas assinhe, percebes?..." O "percebes" final, poluição linguística que grassa no país, foi a gota de água! Mas, eles saíam já do espaço. Desisto. Penso resolver aquilo "a frio, talvez amanhã"...

Azar deles: quando jantava no bar da instituição, o insultador e acólitos entram. O mais alto, que me vira na janela, reconhece-me e, mais uma vez, mostra que tipo de homem é, voltando a cara. Pergunto-lhes a turma, trato-os por senhores. Dirijo-me ao culpado, cerco-o com os olhos, esmago-o com os meus argumentos: que adianta ou atrasa à sua vidinha as tendências sexuais dos outros? Que quem assim insulta ali, fá-lo-á mais vezes, na rua, no emprego, nos desafios desportivos, no trânsito, em casa. Como fazer se o seu próprio filho for um dia um "p........", e como saber, sim, como sabermos nós próprios, que decerto ainda não tivémos a nossa primeira experienciazinha sexual, se não somos iguais? A tolerância aprende-se aqui, nestas mesas, nestes bancos, tal como o a capacidade para a paz. Por outro lado, a menina que passara quando o "p....." nem olhara, fora insultada... Percebera o idiota do insultador que ela nunca o olharia duas vezes? Uma mulher tem a sua dignidade, não aplaude bestas, grosseirões, lançadores de insultos, mesmo que o seu físico excite esses animais ditos "de cobrição" ou por isso mesmo... O rapaz tenta recuar, outro interfere, porque lhes chamei cobardes. Num golpe rápido de olhos cortantes, digo-lhe que a conversa "não é com o senhor". Cala-se, encolhe-se. Desta massa se fará o meu país. Que indignidade! Termino com remate dolorosamente - para mim - bíblico - mas quem se atreveria a negar essa verdade de aço? - : "não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti".
Ninguém no bar interfere. Falo baixo e incisivamente. Todos percebem que há ali muita tensão. Acabo. Digo-lhes que tenham melhor porte, mais dignidade. Acabo.
No início, cantavam canções bíblicas para me provocar, ou sorriam entre eles, inseguros e procurando apoio no olhar do idiota mais próximo. "Homens em grupo", penso "São tãããaao fortes!". Riam, ensaiavam insultos mais leves uns aos outros.
Agora, que lhes falei, explicando que não temos de ser inimigos para todo o sempre e que passarei a cumprimentá-los, sorriem, tímidos como se fossem do primeiro ciclo, simpáticos até e admitem:
" - É simples, nunca ninguém nos disse absolutamente nada, aqui. Nunca nos foi chamada a atenção por absolutamente nada... Por isso é que estranhámos tanto. Desculpe...".
Sorrio. Digo que sou dali, de Azimutes. Reconheço que sou diferente, que tenho espírito de "cota" e que a minha verdade é que a educação, a sabedoria e a dignidade nunca estiveram a mais na vida de ninguém... Nunca pedirei desculpa pelas minhas palavras, nunca, mas peço pela agressividade de que as imprimo. Sempre mais força do que aquela que queria. Tant pis!...
Vamos cruzar-nos muitas vezes, na nossa cidade. Partilharemos muitas coisas, provavelmente, serei eu a ensinar os seus filhos, naquele mesmo lugar. Será como quiserem na lei da reciprocidade. Só receberão o respeito que derem aos outros. Ponto final.
Aceitam, ainda tristes mas já de alívio colado ao rosto. Afasto-me. Tenho consciência dos riscos que corro. Estou viva. Penso. Arrisco. Deus nunca me abandonou até hoje. Ensinar é desgastante e absolutamente entristecedor as mais das vezes: implica envolvimento e eu, eu nunca virarei confortavelmente a cara sempre que outros façam ou digam o que a mim me faria sofrer. Reciprocidade: "Ser-te-á devolvido na medida em que deres".


01:35

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25 Maio 2003


Azimutes, exterior, 23:09, 25/5/2003.

O miúdo acena-me na rua. Reconheço-lhe o ar doente, pálido e cheio dos sinais de quem já viu o Outro Lado, atacado por tumor e de doença já em remissão. A força com que luta pela vida envergonha-me e, logo em seguida, incute-me uma força maior do que a própria vida.
" - Teacher! Passeia?... Está com bom aspecto!"
Cumprimento, toco-lhe o braço, o rosto com a palma da mão aberta. Sinto-me maternal. Inspiro o ar, respondo:
" - Tu também. Gosto mais do teu ar, hoje. Ontem estavas mal... Engano-me?..."
Reconhece que tenho razão: às vezes as dores voltam com muita força... Mas hoje não! Repete-me que se sente amado e feliz. Sorrio-lhe e digo-lhe que também eu o amo com os olhos e que me inspira toda a ternura possível a quem nunca teve filhos.
Conta-me outra das suas estórias, sorridente e já leve, um misto de vivaz alegria dos seus treze anos de criança e os seus oitenta de sabedoria lúcida sem cinismos. Por momentos, também eu sou feliz, por ele, com ele, que vive e irradia alma. Agradeço ao Alto. Despedimo-nos até dali a uns dias. Digo-lhe que quando tiver um filho, quero que seja como ele. Sorri, acena-me e afasta-se, observando, como eu, pardais, nuvens e folhas de árvores cantando no vento. Temos o mesmo olhar. Ambos nascemos talhados para a felicidade com a amarga consciência de já ter sofrido muito: ele, no corpo, eu, na alma. Faz boa estrada, pequeno. Precisamos de ti por perto...


23:26

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24 Maio 2003

Azimutes, 24.5.03.

Uma senhora encontrou outra.
A primeira sugeriu à segunda - com a costumeira arrogância - que lhe levasse para a sala de trabalho uma cadeira para um dos "clientes" da escola. A segunda, com a costumeira nula atitude, não se anulou e ripostou, rosnando avessa vontade ao trabalho, babando imprecações e olhares de odienta funcionária pública: " - Vá você! Olhe, estão ali em baixo!..." e afastou-se de cabeça levantada e ofendida no âmago... A outra, murmurou um palavrão e mandou o aluno buscar a dita cadeira que, sem culpa de nada, foi devidamente pontapeada. A criança estava preparada para o futuro em Azimutes: poderia vir a ser, um dia, como qualquer uma das senhoras, nula e mal agradecida ao seu país, não esquecendo, pelo meio, de destruir os equipamentos de cuja fealdade os seus filhos hão-de queixar-se um dia, promovendo greves e culpando um qualquer ministério.


23:57

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23 Maio 2003

Azimutes, 18:38, 23/5/2003.


O grupo de adolescentes envergando roupas negras exibia as tenras rosas amarelas nas mãos. Estava tudo marcado para as 18h30 na igreja da área onde ela morara. Consternação, pouca leveza, bandeira a meia haste, pela segunda vez no mesmo mês. Tudo dentro do previsível. Quem, então, decidira pôr música alta num dia de luto decretado pela instituição?... Ao passar perto da associação de estudantes, era nitidamente audível a batida dançável. Meu Deus! Para não falar do já escasso e quase esgotado "respeito", alguma sensibilidade seria útil numa casa como esta, dignificante, até, essa contenção. Não. Nunca ouviram falar, não se usa com tops nem óculos "máscara", não é comestível, não é uma marca de gel, não dá notoriedade, está definitivamente ultrapassada essa característica de personalidade. Quem é sensível estará irremediavelmente só, em Azimutes. À hora marcada, o cortejo saíu. A miúda teria 15 anos. Causa da morte: hemorragias internas. A eterna senhora de preto viera, de foice rápida e urgente, buscar mais uma. "Morrem cedo aqueles que Deus ama."


18:44

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22 Maio 2003: blog neófito



Azimutes.

Livros fechados a cadeado. Mortos. Fenecendo, esperando sempre. A Imperatriz assim decidiu. Todos os olhos se baixaram quando ela, a nova, perguntou porquê.
Sopesados todos os considerandos, nada mudaria.
" - Mistério..." - disse, provocando entre outros, um arquear de sobrancelhas num, um ataque de tosse noutra e um matreiro sorriso de outro dos dinossauros do doce funcionalismo público.
" - Não se queime!" -disse Maria entre dentes, fingindo serenidade.
" - Nããããaa, só um cheirinho a penas queimadas-de-espevita-funcionário-público... Aguilhoadas movem mais do que palmadinhas nas costas, animam! E a urticária nunca matou ninguém..."
" - Veja lá... É nova por estes sítios... Beware..." (A Maria é de Germânicas).
Aquilo permitiu-lhe traçar o azimute de mais um ano longe, ideia que era confirmada pelo relógio da biblioteca que, ostensivamente, exibiria o número seis no topo, pendurado pelos fios eléctricos desde que lá entrou, no dia zero, até ao dia da solução final, o da partida. Ainda hoje, Azimutes não existe, não é o seu país, não tem o seu povo, anular-se-á nos seus crimes de terra pacificamente embrutecida, cega e estéril.


23:40

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